Contos e Tal

Contos de uma Mente Doentia, por Sol Soares



* Se eu Soubesse Antes o que eu Sei Agora


Um dia, para sair da rotina, decidi contrariar o certo, ludibriar as leis, achando que tudo terminaria em pizza, como sempre terminou. Pelo menos no meu país, ainda é assim. Nasci, cresci assistindo as barbáries saindo pela tangente e pouquíssimos cidadãos pagando o preço real.

Viajei o mundo, conheci lugares extraordinários, pessoas de boa e má índole e aproveitei para ganhar um dinheiro fácil. Muito fácil.

Não que eu precisasse.

A vida é uma escola, você só precisa prestar atenção na aula.

O lance era o seguinte: entrar em uma país transportando uma mercadoria proibida. Uma mercadoria que fazia "alucinar", esperada por muitos e que poucos tinham coragem de fazer a viagem.

Eu tive essa coragem, eu senti adrenalina. Eu a queria.

Só não esperava ser descoberta, pega, sem escapatória ou justificativa.

E sim, eles me pegaram e acreditando numa política corrupta e de fácil manipulação assumi o meu erro. Que mal tinha nisto?

Porém, foram implacáveis, me julgaram certamente e decretaram minha condenação.

Somente depois, muito tempo depois, entendi o significado de meus passos e o arrependimento foi intransigente. Queria sumir dali, recomeçar a engatinhar desde o berço, ficar ao lado daqueles que realmente me trariam paz e leveza de viver.

Agora era tarde, minha respiração estava cada vez mais pesada. Não sentia as pontas de meus dedos, não sentia nada além de dor e desespero.

Eu sei, pagaria o preço real da minha intransigência. Quantas vidas eu iria destruir se meu intento chegasse até o final?

Perdoe-me por fazê-los passarem por isto. Perdoe-me por ter vivido em um país que aprendi a ludibriar o sistema, onde tudo sempre foi possível e os próprios governantes apoiam erros assim, como o meu.

Se na minha nação, contrariar leis levassem ao mesmo final que fui sentenciada, seríamos um lugar melhor para viver e menos lágrimas correriam nos rostos daquelas mães e pais que tentam conviver com a dor de ter perdido os seus filhos para o lado negro desta maldita escola.





* O Último Pedido


Querido Papai Noel,

Sempre quis escrever para o senhor, desde minha meninice, mas confesso que fiquei um pouco desapontada há mais de 30 anos, quando completei 7 primaveras naquele ano de 1980.
Lembro-me como se fosse hoje, sentada em frente ao aparelho de televisão assistindo um comercial, onde o senhor andava em seu trenó e pedia para as crianças que tinham sido boazinhas naquele ano, deixar uma meia na janela com o seu pedido de presente.
Fiz exatamente como tinha dito, peguei uma meia velha - mas a mais conservada que tinha - um pedaço de papel de pão e escrevi assim: "Papai Noel, não sei dizer se fui uma boa menina neste ano, perguntei para minha avó e ela achou graça passando suas mãos em meus cabelos. Pelo brilho nos seus olhos, acredito que sim. Gostaria, se possível, de ganhar uma Suzy, pode ser qualquer uma. Todas as meninas aqui da rua tem uma e eu sou a única que não. Uma delas, a Marcia, tem uma coleção inteira, mas sua mãe não deixa ela emprestar nenhuma para mim. Acho que é porque sou pobre e posso estragá-la. Se puder, também mande um Panetone da Bauducco, minha avó adora, mas tem que ser da Bauducco. Obrigada Papai Noel".
No dia seguinte, a primeira coisa que fiz foi olhar na janela do quarto para ver o presente. Entretanto, não tinha nada, inclusive a meia. A janela do quarto ficava para a rua. Falei para minha avó que talvez eu não tivesse sido uma boa menina ou o Papai Noel não gostava daquele tipo de papel de carta.
“Provavelmente uma das renas do papai Noel estava com frio e ele precisou da meia para aquecê-la, vamos esperar para o próximo ano”.
Hoje sei que isso não aconteceu, mas para época, foi a melhor explicação que minha vovó pôde me dar, e, assim, fiquei esperando a devolução ano a ano, mesmo sem a Suzi e sem o panetone na meia.
Caso o senhor queira saber, eu tentei ser uma pessoa melhor esse ano, deixei de gastar dinheiro à toa, alimentei alguns animais abandonados na rua, cheguei alguns dias sem me atrasar no trabalho e abracei e disse que amava mais pessoas nestes 365 dias.
Quem sabe nesse finalzinho de 2008 minha meia não volta recheada de surpresas?
Te Amo Papai Noel.






* Coração Dilacerado


         As flores que me alegravam nas manhãs de primavera com sua beleza aprimorada e perfume adocicado, já não me comoviam mais. O sol antes majestoso que me recebia tão especialmente corando minha face, não aquecia mais a alma.
Descobri na inocência de um olhar que um dia pertenci a outro amor. Cativei um coração com o mais simples gesto de um ser que não foi suficientemente forte para entender a simplicidade de amar. Ou será que amei demais?
Quando você surgiu diante de mim parecia um anjo caído do céu. Resplandecia ouro, no que era mais perfeito de um conto de fadas. Não tive dúvidas nem questionamentos. Abandonei aquele coração que já pertencia à outro e o dilacerei sem remorsos deixando-o agonizar num mundo gélido e sombrio.
Entreguei-me ao novo, o qual julgava eterno, entretanto nos caminhos tortuosos que me direcionava ao desconhecido o destino pregou nova peça ou ensinou-me a viver.
Aquele em que pensava ser o motivo do meu respirar, do meu acordar e adormecer, tornou-se a razão do meu chorar, das noites em claro sonhando com o toque de seus dedos, o calor do seu corpo, o cheiro de sua pele, o timbre emitido de seu coração quando seu corpo nu entregue as sensações mais selvagens e eróticas transcenderam a paixão.
Salvo engano dos meus sentimentos. Agora era a minha vez de dilacerar esse coração.

A mulher que antes graciosamente levantava alguns centímetros de seu vestido para mostrar a perfeição de sua canela, agora segurava-o desesperadamente entregue numa dor somente dela: a ausência do passado e a permanência do que parecia um amor adolescente.


"A vida não era injusta. Ela que não sabia vivê-la".




* Expresso Negreiro


         À noite está escura e gelada. Um frio que faz os dentes rangerem e o som assustador que sai da boca dos que ainda respiram deixa a madrugada ainda mais aterrorizante.
As ruas da pequena cidade de Valparaíso estão vazias e mal iluminadas. Apenas um farolete da casa de Dona Jujua casa alegre – pisca intermitente aguardando o último cliente sair.
Essa cidade já foi palco de muitas ilusões e histórias sinistras além de estrangeirismos e lendas folclóricas. Tudo acontece em Valparaíso.
Pietro saiu cambaleando de Dona Juju, mostrava que a noite havia sido regada a bebidas fortes e perfumes baratos. Assim que o molambento atravessou a pequena porta de aço a rua ficou numa penumbra total.
Ele ficou ali, por uns minutos, olhando para os dois lados da viela. Não lembrava se precisava subir ou descer para ir em direção ao seu lar. Balançou a cabeça, se espreguiçou e resolveu descer a pequena ladeira, afinal, chegar ou não em casa era algo que não precisava se preocupar; já que ninguém mais o esperava por lá.
As pernas mal se aguentavam com o corpo, a cada dois passos arrastados que dava, um quase o deixava cair.
Assim que terminou a viela, avistou do outro lado da avenida que durante o dia é intransitável de transeuntes e veículos, um pequeno banco ao lado de um ponto de ônibus. Pietro sabia que nas madrugadas a dentro não havia circulação do transporte público, então era sua única opção esperar o dia amanhecer para seguir o seu rumo.
Pietro se acomodou no pequeno banco de cimento e relaxou suas costas no encosto de ferro tombando lentamente sua cabeça para frente. Num ímpeto de se entregar ao sono característico da vida boêmia, um vento gélido assoprou em sua nuca, deixando os seus ralos pelos louros, levantarem em direção de alerta.
- O quê?
Abriu os seus olhos e movimentou sua cabeça para os lados. As pestanas voltaram a ficar pesadas e como antes, o peso da cabeça tombou em seu peito. Mais uma lufada de vento percorreu todo o seu pescoço.
- Hã? – o corpo sacolejou – Quem está aí?
Até onde sua visão o permitia enxergar, viu dois luminosos faróis seguindo em sua direção. Não, com certeza estava muito alcoolizado, pensava, não era possível a uma hora daquelas alguém transitar por ali.
A luz foi ficando mais densa e contínua. Pietro forçou o corpo para a frente e fixou seus olhos naquela paisagem. Os pelos de todo o seu corpo se eriçaram e já não sentia as zonzeiras da bebedeira.
Um ônibus, claro, ele pensou e rapidamente levantou-se e ajeitou o paletó e a gola surrada da camisa. Elevou com dificuldade o braço para fazer sinal ao estranho transporte.
Silenciosamente o veículo parou na sua frente e continuava perturbadoramente escuro dentro dele. Pietro bateu na pequena divisória de vidro e a porta rangeu vagarosamente ao abrir.
Sem pestanejar e se quer olhar antes de entrar, Pietro rapidamente subiu os degraus e só se preocupou em levantar a cabeça para encarar o motorista quando a porta se fechou atrás de si e uma voz apavorante lhe desejou boa noite.
Foi neste momento que seus olhos visualizaram a pior imagem cadavérica que alguém poderia imaginá-la. 
- Pronto para o inferno, Pietro?



* A Vida é uma Roda Gigante

     "Aquele menininho cresceu sem seus pais. Não, que não os tivessem. Eles apenas não estavam lá. Sua vidinha se remetia no jogo de botão com o avô e sua eterna paciência em descrever histórias de uma vida que via além das estrelas para um adulto que se fechava no seu próprio mundo, no seu tempo e numa memória esquecida. 
Mas, o menininho sabia, que o seu tempo também chegaria e uma semente plantada agora, se tornaria a árvore que o resgataria de um futuro semelhante a roda gigante que nunca pararia de girar."



* Uma Noite ao som de Portishead


     Ela conheceu ele por acaso. 
Na verdade foi numa troca de interesses. Mas os assuntos profissionais acabaram os mantendo cada vez mais próximos. Conversavam sobre assuntos que mais ninguém conversava ou pelo menos se interessava.
De uma forma diferente eles se completavam. 
As conversas foram ficando cada vez mais contínuas. Deixavam afazeres, responsabilidades, obrigações sempre para depois, porque o que importava era suprir a curiosidade um do outro.
Até que algo saiu do controle. Os assuntos que eram discutidos com a intenção de trocar experiências e alegrar a alma se confundiram com o êxtase em suprir emoções corporais e inúteis.
Ela gostou. Ele? Ela nunca soube de suas reais intenções.
Nunca mais ser viram, se falaram e o toque de seus dedos, o som de sua voz ficaram guardados para sempre em sua memória.




* A Curiosidade Mora ao Lado

     "No final da rua dos italianos, José o periquito amarelo arquitetou sua moradia em uma pequena caixa de madeira que outrora era usada para guardar fios de cobre.
Há tempos, José estava recluso em sua casa. Até mesmo o gato Laurentino andava preocupado com o seu sumiço.
Numa determinada manhã, Laurentino não se conteve e resolveu fazer uma visita ao seu amigo amarelo. Escalou o alto poste de madeira e bateu, miou, arranhou sua casa, mas não obteve resposta. Foi aí que curioso como era resolveu dar uma espiadinha... e... bum!!! Lá no fundinho da caixa estava José exercendo a natureza de ser mãe, cuidando, zelando do que lhe era tão natural.
O gato Laurentino achou graça e saiu depressa, não queria acordar as crianças. Na verdade, ele queria mesmo era voltar para o terreno baldio e contar a novidade aos amigos, que José nada mais era que Joséia."



* Mercadoria do Amor

Maio, 1870

- Oh!Deus! Não, não. Por quê? - Adele dizia sem parar.
- Adele, calma, o que está aconteceu, querida?
- Minha vida se tornou uma eterna escuridão - ela segurava a saia de seu vestido.
- Não diga isso, minha filha. Explica-me sem hesitar o que está te assombrando - implorava sua mãe.
- Hoje, após a limpeza do grande jardim da mansão dos Tavares, o senhor João Pedro veio falar-me - Adele suspirou, limpou algumas lágrimas que insistiam em cair de seus grandes olhos verdes - disse-me mamãe, que está apaixonado e não irá dar-me mais tempo.
- Apaixonado?  - interrompeu dona Matildes.
- Sim, apaixonado. Disse ainda que nada, nem ninguém impedirá suas ações. - ficou calada um momento e olhou fixamente para a mãe - João Pedro me pediu em casamento.
- Casamento?  - dona Matildes parecia em choque.
- Oh! Meu Deus! - A menina quase mulher levantou as mãos aos céus numa suplica espantosa.
- Filha minha, esse amor é impossível, impossível - dona Matildes andava de um lado para outro - impossível, impossível.
- Eu sei mamãe. Contarei a João Pedro o que seu pai me tornou.
Adele levantou o vestido e era nítida a marca ferrada em sua coxa interna. A marca que um dia o patriarcal Sr. Tavares transformou-a em mercadoria.



* A Mulher que experimentou Viagra


Danilo chegou atrasado ao trabalho como sempre fazia. Entrou devagar por um portão de madeira e seguiu direto para o prédio abandonado onde seus companheiros o aguardavam ansiosos.
- Danilo, isso são horas?  - o mestre de obras esbravejou por sobre os óculos escuros.
- Desculpe, chefe - sussurrou olhando à sua volta.
Sem delongas, Danilo entrou no calabouço já preparado pelos outros empregados e começou a apalpar o chão.
- Chefe. Tem algo estranho por aqui - pulou em cima de um desnível no solo.
- O que é, Dan? - o mestre envergou o corpo para observar melhor o fundo do buraco.
Danilo abaixou-se e com as mãos apalpou mais uma vez a terra úmida e mal-cheirosa. Com a ajuda de uma pá, começou a cavucá-la e separá-la em montes. Um odor fétido começou a adentrar em todos os cantos daquela vala e os que estavam próximos, começaram a tapar suas narinas com a ajuda das mãos e roupas.
- Chefe. Desça aqui. Veja o que encontrei - Danilo exclamou apontando para algo.
O mestre Serafim, desconfiado desceu as escadas de aço ressabiado com o tamanho do animal que estaria enterrado ali.
- Meu Deus! - Serafim já não conseguia se mexer.
- Então, mestre, você ou eu chama os tiras?
Danilo estava ao lado de um corpo de mulher. Apesar da avançada decomposição de sua matéria, ela parecia que dormia, relaxada e se olhasse bem de pertinho em seu rosto, ainda perfeito, era possível vê-la sorrindo e feliz.



* Igualdade sem direitos


8 de Março de 1857 - Fábrica de Tecidos - Nova Yorque

     Era para ser um dia como qualquer outro, mas se transformaria num momento histórico e revoltante, mulheres perderiam seus sonhos, esperanças, amores, vidas.
Elas só queriam uma coisa: IGUALDADE DE DIREITOS.

- Não podemos mais acreditar na sorte e em histórias de fantasia, num cavalo branco com um cavalheiro e sua espada entrando pelos corredores desta fábrica para nos salvar. Não existe tantos príncipes no mundo. Precisamos ter a palavra, precisamos lutar pelos nossos sonhos e direitos. Vejam, estamos trabalhando 16 horas todos os dias, desenvolvendo muitas vezes as mesmas funções do sexo masculino e recebendo, quando chega, a um terço dos salários dos homens. E aqueles homens que nos tratam como lixo, desrespeito com suas mãos e suas línguas sujas e venenosas. Sem dizer que nosso trabalho não acaba aqui, chegamos em casa e ainda precisamos cuidar de nossos lares, de nossos filhos. Os filhos... não temos tempo para os nossos filhos, não tomamos café da manhã com eles, não acompanhamos de perto seu crescimento, sua formação, o seu desenvolvimento. Às vezes no final da noite só conseguimos ouvir sua respiração num sono profundo, intenso e solitário. Quantas de nós, precisam contribuir com as despesas de nossas casas? Quantas de nós somos mães e pais dessas crianças? Fomos abandonadas pelos nossos maridos que simplesmente não queriam o mesmo que nós: SER FELIZES!. E agora tudo está tão denso, tão profundo e extremamente negro.

     Se fecharmos nossos olhos por um momento podemos imaginar uma pequenina, com olhos fundos, porém expressivos, cabelinhos ondulados e curtos, com seu grande vestidão surrado cobrindo seus joelhos, aquele avental encardido do trabalho braçal e esse discurso tão certeiro saindo de uma boca sedenta por justiça a favor de direitos tão relevantes ao ser humano.
    Após a união dessas mulheres para reivindicar apenas menos 6 horas de trabalho, equiparação de salários e tratamento digno no ambiente de trabalho, foram massacradas cruelmente por seres desumanos de uma época sem leis, sem escrúpulos. Cento e trinta tecelãs foram trancafiadas nesta fábrica e morreram carbonizadas. 

     Se olharmos as mulheres de hoje e esse momento trágico da história, podermos sentir o quanto a ignorância e a maldade cegam às pessoas a ponto de poder culminar a própria raça humana. E isso, quando acontecerá?



* Têm coisas que não podem ser mudadas


    Clarice vivia com seus pais. Nunca se casou, porém tivera três relacionamentos. Para cada um levou um fruto, Mateus, Marcos e Lucas.
Tudo começava assim, namorava, se apaixonava, não se cuidava e pronto, um choro de nenê adentrava  a madrugada. 
O pai Sr. João já estava cansado daquela rotina e sabia que mais uma boca haveria de alimentar.
- Clarice, você precisa tomar juízo, já não é mais uma mocinha. Quem vai querê-la com essa criança?
- Eu sei pai. Isso não vai mais acontecer.
Era a mesma coisa que falar com um jumento e uma segunda vez, outro choro arrancava o sono tranquilo dos humildes moradores da casa.
- Outro menino, graças a Deus. Clarice, Clarice, tome juízo à partir de agora.
- Sim, pai, isso não vai mais acontecer.
Não demorou muito e Clarice conheceu Pablo. Foi amor à primeira vista. Dizia que o grande homem de sua vida havia chegado para alegrá-la e fazê-la feliz. 
Do namoro a morar juntos levou apenas seis meses. Saiu de casa, mas deixou às crianças.
- Pai, só por um tempo, logo volto para pegá-los.
- Olha filha, não se preocupe, os meninos estão acostumados aqui com a rotina da casa. Viva sua vida, mas não se esqueça dos garotos, venha diariamente vê-los.
- Sim, pai.
E Clarice bateu à porta, sem olhar para trás, nem ao menos um gesto, um abraço para aquele homem que era mais que seu genitor. Cuidava, se dedicava e se tornava o grande protetor de seus filhos.
Não demorou muito tempo e passos pesados de uma mulher chorosa e arrependida adentrava na pequena sala onde às crianças ouviam uma história infantil contada pelo avô.
- Nunca mais pai, nunca mais quero vê-lo. Homem insensível, destrutível. E agora, meu Deus, o que vou fazer? Pai...
Clarice se calou, abaixou a cabeça e se jogou no chão encostando a cabeça no colo do pai. Ele entendia tudo, como das outras vezes, mais uma boca haveria de sustentar. 
Só que dessa vez, suas mãos continuaram repousando no braço da banqueta. Não conseguia se mover, não entendia a irresponsabilidade da própria filha. 
Com o passar dos meses o que parecia amor se tornava repulsa e Sr. João não suportava fitar a barriga de Clarice crescer e tomar a forma de uma fábrica de bastardos.
- Não, Berenice, não quero mais ninguém nesta casa, com o que ganho mal dá para matar a fome deles - apontou para o Mateus e Marcos - não quero mais saber, para mim chega, ela que dê um jeito nesse outro, na hora mesmo.
- Mas João, tente entender, o que Clarice irá fazer, quando esse bebê nascer?
- Isso não é mais problema meu. Aqui em casa não, nunca mais.
E os dias passaram e o choro fininho se fez ouvir mais uma vez naquela madrugada fria e sem esperança.
Clarice, logo cedo, vestiu, alimentou o menininho e depositou-o no velho moisés ganhado e forrado com colchas. Entrou no quarto dos pais sem fazer barulho e o colocou ao lado da cabeceira do pai. Deu uma boa olhada naquele rosto cansado das batalhas diárias em troca de míseros cruzeiros e sentiu remorso.
Saiu do quarto da mesma forma que entrou, pegou uma mala com suas roupas e partiu.
Senhor João e Dona Berenice, nunca mais tiveram notícias de Clarice.
E assim, a menina que virou mulher, saiu de suas vidas para ser o que jamais o pai quisera que fosse mas era a única coisa que lhe dava esperança: amar.



* A Mulher de Matisse


     Sofia sentou-se confortavelmente em sua poltrona favorita que ficava posicionada estrategicamente na pequena biblioteca de Dom Augustus.
A biblioteca era um local neutro e mágico para suas fugas da vida cotidiana e monótona que insistia em vivê-la.
Sofia levantou-se e observou as estantes com seus diferentes acervos que iam do piso amadeirado ao grande forro pintado por Andrea Mantegna, em seu estilo perspectiva ilusionista. Quem olhasse o afresco "Quarto dos esposos" tinha a nítida impressão que as figuras pintadas observavam cada ação do visitante e sua escolha para a leitura. Pelo menos, era o que Sofia sentia enquanto permanecia por ali.
Ela circulou o espaço e com o toque das mãos, acariciava o relevo dos títulos e autores. Retirava alguma obra da estante e como se pedisse opinião, olhava para cima e o guardava em seu lugar.
Um livro especialmente chamou a sua atenção e diferentemente do que fazia a pouco, não consultou os especialistas.
Sofia o retirou de sua morada e tomada por uma sensação de descoberta passou delicadamente seus dedos longos e torneados na capa prateada e com o indicador, contornou as letras grifadas em ouro que dizia: "Interior de Redomas", em seu título.
Abriu.
Na primeira página se deparou com a gravura "A mulher e os peixes", de Henry Matisse.
- O que aflige essa mulher? - Sofia se perguntou em voz alta.
Virou a próxima página e sussurrou poeticamente para si.
"Não será o teu aquário
feito rio embrionário
ou berço de algum mar
é bolha d'água  exilada
e finita,
em cômodo da tua casa
estrita,
[a tua própria ampola
inscrita
na grande redoma de ar
que no vácuo, sem par 
orbita.]
Sofia, emocionada, devolveu aquela relíquia ao seu devido lugar e voltou a sentar-se na poltrona que era o seu porto seguro. Esticou as pernas apoiando-as numa almofada bordada com motivos angelicais e inclinou lateralmente sua cabeça deixando seu olhar perdido no horizonte.
- Preciso olhar além do aquário - disse aos afrescos.
O que estava fazendo dos seus momentos? O que realmente a incomodava?
- Eu sou aquela mulher de Matisse - falou angustiada.
Vivia numa grande prisão, trancafiada em um mundo sem grandes aspirações, dependente de pessoas que não completavam suas ambições e seu jeito de ser. Faltava-lhe ar, faltava-lhe água para braçadas mais espaçosas e que lhe conduzisse a mares nunca antes navegados.
- Coragem! - gritou apoiando o rosto sobre as mãos.
Entretanto, era isso que não tinha.
Sofia ficaria presa em seu aquário, feito rio embrionário ou berço de algum mar, como um dia, um poeta escreveu.


A Mulher Antes de uma bacia de Peixes - Henry Matisse - 1922


* Desabafo de uma mãe postiça


     Eu não fui mãe. Não, por não poder, mas por ter a consciência de ser egoísta.
Porém, não é um egoísmo egocêntrico e sim, uma maneira de demonstrar medo do mundo.
Um mundo que separa e distancia a vida que se forma dentro de si. Uma vida que é unida por um laço do verdadeiro amor incondicional.
Crescemos ouvindo "temos os filhos para o mundo; uma hora eles têm que seguir o seu caminho".
Só que na teoria é compreensível, de fácil entendimento e aceitável. Na prática a angústia de não poder mais proteger aquele que é sua continuidade, sua verdadeira razão de viver se torna algo terrível e assombroso. 
Acho até que poderia mudar a palavra "egoísmo" por covardia.
- Sim! Sou uma perfeita covarde. Covarde por saber que um dia, teria que dividi-lo com o mundo e meu maior medo, que ele se tornasse um lugar frio, triste e solitário.

"Realizados são aqueles que percebem que seus filhos valorizam e colocam a família em primeiro lugar. Decepcionados e feridos ficam aqueles que caminham nas madrugadas em busca de um cheiro, um som, uma lembrança de dias em que a alegria, a união, o respeito fazia parte de uma vida com sentido."